uma duas é inacreditável – não no seu sentido mais literal –, e eu não
encontrei outra palavra que o definisse neste início de comentário; e ela me veio
assim, de repente, num súbito aterrador, algumas horas depois de o ter lido e
quando eu me esforçava para deixar de pensar no livro nem que fosse por um
instante. inacreditável porque parece surreal o que brum faz, porque é uma mistura
incrível de opostos: ora perturbador, ora pacífico; ora doce, ora amargo; ora
extremamente real, ora extremamente fictício; inacreditável porque é realidade demais para a realidade. é perturbador, é incômodo e é,
sobretudo, furioso e escrito com sangue.
uma duas foi uma dessas leituras desesperadas depois de uma (indireta)
indicação tentadora e indeclinável. mas não só a vontade de ler foi
desesperadora. uma duas foi devorado
num só fôlego, e não poderia ser de outra forma, porque não parece exigir ser
compreendido, mas sentido; é como um tapa estralado e que latejará por longo
tempo.
a trama acompanha
a relação conflituosa de uma mãe, maria lúcia, e sua filha, laura, quem narra a
história. dois seres que são um só; filha criatura da mãe, e vice-versa, um só
corpo e uma só alma. uma dinastia de
mulheres condenadas a viver sem palavras. um telefonema interrompe uma
discussão entre a filha e o chefe de cauda azul e fosforescente sobre o ódio
dele pelas toscas metáforas dela; tudo em sonho. a mãe é encontrada sem
consciência e apodrecendo (!) em seu apartamento – e com uma parte do pé comida
pelo gato (!) –, e laura precisa assumir a responsabilidade por maria lúcia,
mesmo contra sua vontade. a partir daí, o relacionamento entre ambas é
descrito, sempre em flash-back e com interrupções ora da mãe, ora da filha.
esteticamente, brum
não segue a comum estrutura de narração e diálogo; tudo é misturado e sem elementos
estilísticos que indiquem de imediato o que é fala e o que não é, por isso, o
leitor precisa estar sempre atento a cada detalhe, mas não é nada que comprometa
a leitura. como eu disse acima, o livro corre rápido, mas o tempo da digestão é
longo, longo até demais, e eu confesso que ainda o estou digerindo, e muito tem
custado.
a atmosfera
enclausurante do livro, por vezes, é quase quebrada por momentos em que laura
soa como uma daquelas personagens adolescentes perdidas – e insuportáveis –,
que manifestam dubiedades do tipo “oh, meu
deus, quem sou eu? onde estou? oh! eu não me sinto, oh!”. isso quase
irrita. quase. mas eliane consegue tomar as rédeas da sua narrativa e te joga precipício
abaixo – pra não perder o costume, claro.
eliane meche
numa ferida aberta, ou rasga a que insiste em cicatrizar. a narradora, que em
algum momento questiona a escritura do livro, o que ela teria a dizer já que
tudo já se foi dito de diversas outras formas, e, portanto, a quem interessaria
seu corpo de palavras, constrói brilhantemente a ironia de sua ficção: ela
transforma um tema já estagnado na literatura – a relação entre mãe e filha – em
uma narrativa primorosa e cheia de artifícios que prendem a respiração.
no final, a
narradora-personagem declara: “estou
exaurida. escrever ficção é como emprestar meu corpo para mim mesma”. e nós
também, laura, nós também. as suas palavras – que no início da narrativa
indagas a quem interessaria – nos exaure, toma o fôlego e exige que não
descansemos, porque não está acabado.
***
A risada do braço. O sangue saindo pela boca do braço. Quantas vezes eu já me cortei?
E a voz da mãe no lado avesso da porta. Laura. Rasgo mais uma boca. Meu sangue garoa junto com a voz no piso do quarto. Laura. Minha mãe sempre foi assim. Ela sempre sabe o que estou fazendo.
Começo a escrever este livro enquanto minha mãe tenta arrombar a porta com suas unhas de velha. Porque é realidade demais para a realidade. Eu preciso de uma chance. Eu quero uma chance. Ela também.
Quando digito a primeira palavra o sangue ainda mancha os dentes da boca do meu braço. Das bocas todas do meu braço. Depois da primeira palavra não me corto mais. Eu agora sou ficção. Como ficção eu posso existir.
Esta é a história. E foi assim que se passou. Pelo menos para mim.
uma duas
eliane brum
editora leya
brasil
cento e setenta e seis páginas
edição primeira
(dois mil e onze)
✩✩✩✩✩ (laura quer desenhar bocas cuspindo sangue no teu braço)